A discussão não é nova, mas se mantém atual e acaba ganhando urgência com o passar dos anos e evolução das regulamentações mundo afora. Afinal de contas, a cannabis deve ser tratada como planta ou remédio? A distinção é relevante e faz muita diferença para os pacientes e consumidores, uma vez que a abordagem escolhida vai determinar que tipos de produtos estarão disponíveis em cada mercado. Para a antropóloga brasileira Luna Vargas, que trabalha como educadora canábica no Canadá e dá cursos online em português sobre a planta, o caminho escolhido para a regulamentação na maior parte da América Latina – o do remédio – não é suficiente para garantir o acesso e destravar todo o potencial terapêutico e comercial da cannabis. “A indústria farmacêutica tenta fazer no mercado latino-americano o que não conseguiu fazer nos Estados Unidos e no Canadá. A regulamentação no Brasil e na maior parte dos outros países da região favorece as grandes corporações e não respeita a planta como um todo. A cannabis não pode ser tratada como um fármaco qualquer e ficar restrita às farmácias e aos laboratórios”, defende.
Na visão de Luna, o mercado na América do Norte escapou do controle das grandes farmacêuticas, uma vez que há cadeias produtivas e de consumo que se desenvolvem sem a participação desses atores. “A cannabis está num campo de disputa entre a sua própria indústria e a indústria farmacêutica. Além de história e conhecimento, a indústria da cannabis tem especificidades que estão fora da lógica da big pharma. Entregar essa planta de bandeja para a indústria farmacêutica é um erro político, econômico, histórico e social”, conclui. Ainda que imperfeita, principalmente nos EUA, onde cada estado tem regras diferentes para o uso, a produção e a comercialização da cannabis, a regulamentação norte-americana está mais próxima do equilíbrio entre as duas visões. Lá, a indústria farmacêutica tradicional convive com um mercado, digamos, mais artesanal, onde é possível comprar, por exemplo, flores in natura mesmo para fins exclusivamente medicinais. No Brasil isso é impossível. Flores desidratadas de cannabis, forma mais comum no consumo adulto/recreativo, continuam sendo ilegais. Quem usa a erva legalmente no Brasil precisa comprar produtos industrializados, nacionais ou estrangeiros, vendidos geralmente na forma de óleos ou tinturas.
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Assim, o mercado legal brasileiro, e boa parte do latino-americano, é amplamente dominado por indústrias, grandes e pequenas. Com o avanço das prescrições e a popularização dos tratamentos, também prosperam por aqui as associações de pacientes que, autorizadas pela Justiça, produzem e comercializam medicamentos de cannabis para seus associados. Mesmo aproveitando esse viés, digamos, pró-farmacêutico, algumas empresas não temem uma mudança para um regime mais flexível, como ocorre na América do Norte. Para o CEO da Clever Leaves, Kyle Detwiler, é mais fácil a indústria se adaptar ao mercado recreativo do que produtores tradicionais conseguirem aprovação para atuar no segmento medicinal. “Nós conseguimos produzir cannabis de altíssima qualidade, com certificação europeia de boas práticas, uma das mais rigorosas do mundo. Nós passamos muitos anos e investimos milhões de dólares para chegar nesse patamar. Então, caso o mercado se transforme e as exigências se tornem mais flexíveis, estaremos preparados para atender sejam quais forem as regras. O mais difícil, já fizemos”, afirmou o executivo ao blog.
Surfando na regulamentação favorável da Colômbia, onde fica sua sede principal, a Clever Leaves tornou-se o maior exportador de cannabis legal da América Latina, responsável por cerca de 55% de toda a erva colombiana vendida no mundo. E, em conquista ainda mais surpreendente, conseguiu se tornar a única fornecedora comercial de cannabis legal em nível federal nos Estados Unidos (a outra é uma universidade que produz apenas para pesquisas). É isso mesmo: por meio de sua subsidiária em Portugal, a Clever Leaves fechou um contrato para fornecer flores de cannabis com alto teor de THC para uma farmacêutica nos Estados Unidos. Tudo com autorização das agências federais daquele país onde, apesar da legalização em 12 estados, a erva segue proibida à luz da legislação nacional.
Eis aí mais uma excentricidade provocada por uma regulamentação caótica, onde o entendimento sobre a cannabis pode ser completamente diferente dentro de um mesmo país. É no mínimo curioso ver os EUA, que abrigam o maior mercado consumidor de cannabis legal do mundo, recorrerem a Portugal para adquirir matéria-prima, quando inúmeros estados americanos poderiam fornecer o mesmo produto. Isso acontece porque, simplificando, os estados tratam a cannabis como planta e o país, como remédio.
O tema é complexo, a discussão vai longe e, claro, não se encerra neste post. Pretendo ouvir novos especialistas e outros agentes do mercado a fim de aprofundar o debate. Por ora, fico por aqui, com desejos de um 2022 repleto de saúde, bom senso e informação de qualidade sobre a planta e os remédios que ela nos oferece.